quinta-feira, 11 de agosto de 2022

 

Em busca da cura

 

 O ciclo se repete, mas eu continuo viva.

Como é difícil me aceitar, imperfeita, dissimulada e tão errante.

Cometo os mesmos erros, repetidas vezes.

Quando o outro não tem por mim o mesmo cuidado que eu gostaria que tivesse ou frustra as minhas expectativas, respondo com raiva, ataco e quando atacada de volta, me deixo abater.

Se a raiva e a agressão deixou o outro magoado, lá estou eu para salvá-lo.

E nesse ciclo construo relações frágeis, tristes e sombrias.

A alegria se vai.

A tristeza me conecta comigo mesma como sentimento familiar, onde sinto que existo. Como os poetas românticos me deixo morrer.

Parece que a alegria não me pertence, que não foi feita para mim. Eu lá no íntimo sei que não é verdade, que posso ser feliz e alegre, e ser eu mesma criatura e criadora.

Mas quando o ciclo começa, ele me arrasta para o fundo.

Hoje consigo lembrar aonde deixei o meu fio, me agarro nele e percorro mais uma vez o labirinto escuro e fora da caverna respiro livremente. Poderia perceber os sinais antes de cair na armadilha, mas só algumas vezes isso acontece.

Acho que estou melhor a cada dia.

Na caverna escura e tateando com uma lanterna o fundo, consigo rapidamente encontrar a ponta do fio perdido e me conecto comigo mesma. 

Só por hoje!

 

Eu livro inacabado

Sou cativada pela leitura, mas tenho uma dificuldade hercúlea de terminar um livro.

Tenho a minha constelação de referências literárias, meus autores e temas preferidos. Lá pelo meio do livro já me interesso por outro. A culpa não é do livro. Sofro de desassossego.

Na mesinha de cabeceira tenho uma torre de livros inacabados.

Essa minha particularidade sempre me torturou.

Me achava preguiçosa, superficial e até meio doida.

O tempo e os livros me ensinaram a aceitar que somos todos inacabados.

Agora, leio quando quero e no meu tempo.

Afinal, quem vai me julgar se não conseguir terminar um livro?

Os livros da minha torre se completam e conversam entre si.

A temática deles sou eu, quem os escolheu.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

#paramayacomamor

Maya 


Minha casa

Cheirando a flor recém-nascida

Aconchego e colo morno

 

Pintada com cores

Quentes

Estreando um vestido novo

 

Você pula e flutua

Sem chão

Sem paredes

 

De manhã

Janelas abertas

O mar quebrando na areia

 

Nas tuas orelhas

Passarinhos cantam

Brincos de princesa

 

A cada passo

Teus olhos brincam

De esconde-esconde

 

A noite chega

Portas sem trancas

Papai do céu está aqui



Para minha neta Maya

 


GRACIAS A LA VIDA!

 Hoje faço 62 anos.

Celebro sempre esta data com muita intensidade.

Comemoro durante toda a semana. Começo me conectando com a natureza, gosto de sentir o frio de julho nas montanhas, respirar o verde ar, pisar na terra fresca e presentear os meus olhos com o pôr do sol.

Gracias a la vida!





quinta-feira, 5 de maio de 2022

 

O VESTIDO

Conto baseado no poema CASO DO VESTIDO de Carlos Drummond de Andrade

     No dia da morte do pai, nossa mãe não economizou esforços para que o seu corpo frio fosse velado com o melhor. O caixão foi colocado no centro da mesa de jantar sobre uma toalha branca de renda. O cheiro das camélias adocicava o ar.

     Mãe chegou na sala vestindo seu vestido de festa, o mesmo que usou no casamento de tia Flora, estava perfumada e com os cabelos bem penteados. Poucas vezes a tinha visto tão linda. Trazia um sorriso enigmático no rosto.

     Com um puxão violento arrancou do prego aquele vestido de renda amarelado pelo tempo, consumado, que durante anos ficara pendurado na parede da sala. Coloco-o em uma bandeja e atiçou fogo.

     Enquanto o vestido queimava diante do corpo do meu pai, nossa mãe servia um café com broinhas de milho aos poucos parentes e vizinhos.

     Enquanto caminhava para o cemitério que ficava a algumas quadras de nossa casa, abraçada a minha mãe, eu pensava com tristeza no pai e na história do vestido.

     Lembrei-me do dia que o pai saiu de casa, penso que tinha uns seis anos e minha irmã oito. Ele era um homem bonito e forte, trajava um belo terno de linho e um chapéu de palha. Montado no seu cavalo partira para uma grande aventura. Nossa mãe nos disse que ele logo voltaria com muito dinheiro e que seríamos ricos.

     Diariamente imaginava meu pai conquistando reinos, lutando contra dragões, salvando princesas prisioneiras em castelos, vencendo os mais violentos inimigos. O pai era o meu herói. O tempo passava e a mãe não se entregava, costurava, fazia doce, lavava roupa para fora. A mãe não chorava.

     Um dia nosso pai retornou, eu já não era mais criança, uns dez anos se passaram.

     Agora estava feio, de roupa velha, magro, destruído, perdera os alvos dentes, seus olhos se apagaram. A grande  aventura havia consumido meu pobre pai.

     Deu para minha mãe aquele vestido de renda que nela não cabia e que por outra fora usado. Mãe pregou na parede da sala o vestido sem dizer palavra.

     Pai então passou a dormir no celeiro, comia pouco o resto que sobrava, não se ouvia sua voz. Uma dor o devorava. Minha mãe só remoçava e nos dizia que o pai estava doente.

     — Mãe, de quem era o tal vestido?

     — De uma bruxa, minha filha, que afastou seu pai de nós por muitos anos. Seu pai arrancou-lhe o coração e me trouxe o seu vestido.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

  

A Metamorfose

 

Você estava tão desprotegida, no meio da rua, no asfalto quente, em pleno sol do meio-dia.

Ao te ver, perguntei para mim mesma, o que te levou para esse lugar inóspito? Foi um ato deliberado de protesto ou um grito de desespero? Ou seria, distração?

Será que foges da vida rotineira e da responsabilidade de ser uma lagarta?

Não te posso ouvir, mas procuro adivinhar os teus pensamentos.

Sigo o meu instinto de proteção e acreditando estar te ajudando, te apoio com delicadeza em uma folha e te coloco em uma árvore. Acreditando que te colocar em seu antigo habitat, em contato com a natureza, tu voltarás a bordar as folhas, te aprisionarás no casulo e com tempo voarás.

Não tenho certeza se é esse o destino que gostarias.

Mas, as tuas cores te denunciaram. O teu vermelho e o amarelo gritaram a tua presença. Foi impossível não te ver, mesmo caminhando distraída.

Enfrente o medo da metamorfose e voa.

E quando quiser vem me visitar.

 

 

Céu da boca



Nas longas noites

de medo e incertezas

São as estrelas

do céu da tua boca

Que iluminam o caminho

Para a viagem

ao invisível

  

A menina da foto preto e branco

 

    A menina parecia desconfortável e apertada com aquele cinto afivelado na cintura, o vestido branco recém passado e engomado tolhia seus movimentos, mas o bordado em volta do pescoço e as mangas fofas davam-lhe um falso ar de delicada leveza. Enfeitada com os presentes do batizado, trazia no pescoço o cordão com a medalhinha de algum santo de fé da família, brincos de bolinha e a pulseira com o nome gravado. Os sapatinhos com as solas limpas e novinhos em folha mostravam o quanto ela foi preparada para posar para aquela foto. Seu rosto sério e olhar compenetrado já traçavam a sua personalidade, mas suas mãos em posturas conflitantes deixavam escapar a sua inquietude. Enquanto a mãozinha esquerda pousava, espalmada e relaxada sobre o vestido, a mãozinha direita se fechava, amassava o vestido, contraia o braço e elevava o ombro, numa tensão indisfarçável.

Agora a menina cresceu e aprendeu que as emoções estão além da dualidade e que a vida pode ser colorida.

Ela não precisa ser ora Ártemis, ora Afrodite. Ela não precisa ser deusa, pode ser apenas humana e vulnerável.

A menina da foto preto e branco não precisa mais posar.




Publicados no livro Céu da Boca - 2020:


A menina da foto preto e branco

Céu da boca

Metamorfose

 

Buscar palavras

 

Busco palavras

que amenizem a dor

Palavras que soem bem

Doces, mas não enjoadas

Vestidas com cores alegres

Que brinquem de esconder

Aqueçam no frio

Refresquem no calor

Não gritem, sussurrem

Sei que elas moram em mim

Mas não acham a porta.

Emoção costurada


Ela foi educada para ser forte e rígida.

Sua emoção foi costurada com uma linha resistente e com pontos cirúrgicos que uniam a borda da extensa ferida na sua pele.

Os pontos poderiam ser retirados no tempo certo para que a cicatriz ficasse imperceptível. Mas eles foram ficando e franzindo a pele ao redor.

Ela sabia que retirá-los, tardiamente, significava sangrar.

Pensou que nesse momento de vida seria insanidade libertar a emoção contida.

Sua racionalidade a afastava de ideias imprudentes.

Ela tinha medo da loucura.

Sempre se manteve afastada de tudo que considerava estranho, anormal, louco, demente ou perigoso. Como se fosse uma doença contagiosa. E foi ficando encurtada, atrofiada, apática e quase sem voz.

Para curar-se, ela sabe que precisa sangrar e contemplar o mundo que tanto a assusta.

Sabe que tirar os pontos tardiamente dói.  Mas, continuar com a emoção costurada não é mais possível.

  Em busca da cura     O ciclo se repete, mas eu continuo viva. Como é difícil me aceitar, imperfeita, dissimulada e tão errante. Co...