sexta-feira, 13 de agosto de 2021

  

A Metamorfose

 

Você estava tão desprotegida, no meio da rua, no asfalto quente, em pleno sol do meio-dia.

Ao te ver, perguntei para mim mesma, o que te levou para esse lugar inóspito? Foi um ato deliberado de protesto ou um grito de desespero? Ou seria, distração?

Será que foges da vida rotineira e da responsabilidade de ser uma lagarta?

Não te posso ouvir, mas procuro adivinhar os teus pensamentos.

Sigo o meu instinto de proteção e acreditando estar te ajudando, te apoio com delicadeza em uma folha e te coloco em uma árvore. Acreditando que te colocar em seu antigo habitat, em contato com a natureza, tu voltarás a bordar as folhas, te aprisionarás no casulo e com tempo voarás.

Não tenho certeza se é esse o destino que gostarias.

Mas, as tuas cores te denunciaram. O teu vermelho e o amarelo gritaram a tua presença. Foi impossível não te ver, mesmo caminhando distraída.

Enfrente o medo da metamorfose e voa.

E quando quiser vem me visitar.

 

 

Céu da boca



Nas longas noites

de medo e incertezas

São as estrelas

do céu da tua boca

Que iluminam o caminho

Para a viagem

ao invisível

  

A menina da foto preto e branco

 

    A menina parecia desconfortável e apertada com aquele cinto afivelado na cintura, o vestido branco recém passado e engomado tolhia seus movimentos, mas o bordado em volta do pescoço e as mangas fofas davam-lhe um falso ar de delicada leveza. Enfeitada com os presentes do batizado, trazia no pescoço o cordão com a medalhinha de algum santo de fé da família, brincos de bolinha e a pulseira com o nome gravado. Os sapatinhos com as solas limpas e novinhos em folha mostravam o quanto ela foi preparada para posar para aquela foto. Seu rosto sério e olhar compenetrado já traçavam a sua personalidade, mas suas mãos em posturas conflitantes deixavam escapar a sua inquietude. Enquanto a mãozinha esquerda pousava, espalmada e relaxada sobre o vestido, a mãozinha direita se fechava, amassava o vestido, contraia o braço e elevava o ombro, numa tensão indisfarçável.

Agora a menina cresceu e aprendeu que as emoções estão além da dualidade e que a vida pode ser colorida.

Ela não precisa ser ora Ártemis, ora Afrodite. Ela não precisa ser deusa, pode ser apenas humana e vulnerável.

A menina da foto preto e branco não precisa mais posar.




Publicados no livro Céu da Boca - 2020:


A menina da foto preto e branco

Céu da boca

Metamorfose

 

Buscar palavras

 

Busco palavras

que amenizem a dor

Palavras que soem bem

Doces, mas não enjoadas

Vestidas com cores alegres

Que brinquem de esconder

Aqueçam no frio

Refresquem no calor

Não gritem, sussurrem

Sei que elas moram em mim

Mas não acham a porta.

Emoção costurada


Ela foi educada para ser forte e rígida.

Sua emoção foi costurada com uma linha resistente e com pontos cirúrgicos que uniam a borda da extensa ferida na sua pele.

Os pontos poderiam ser retirados no tempo certo para que a cicatriz ficasse imperceptível. Mas eles foram ficando e franzindo a pele ao redor.

Ela sabia que retirá-los, tardiamente, significava sangrar.

Pensou que nesse momento de vida seria insanidade libertar a emoção contida.

Sua racionalidade a afastava de ideias imprudentes.

Ela tinha medo da loucura.

Sempre se manteve afastada de tudo que considerava estranho, anormal, louco, demente ou perigoso. Como se fosse uma doença contagiosa. E foi ficando encurtada, atrofiada, apática e quase sem voz.

Para curar-se, ela sabe que precisa sangrar e contemplar o mundo que tanto a assusta.

Sabe que tirar os pontos tardiamente dói.  Mas, continuar com a emoção costurada não é mais possível.

 

#Ilhéuscomvocê



Barramares

docemar

seusalnaminhaboca

 

Almavoa

ventoleva

meusolhospousamnocoqueiro

 

Cançãoazul

notassalgadas

susurrandonoouvido

 

Marisianoar

cheirodesol

dourandoapelemorna

 

Corpoflutua

libertodesí

nemsintoareianospés

 





 Publicados no livro Sumo: - 2019:

#Ilhéuscomvocê

Emoção costurada

Buscar palavras


quinta-feira, 5 de agosto de 2021

      A Ametista e o beija-flor

 

     No longínquo e rochoso mundo mineral, onde habitavam as pedras preciosas, o rei Diamante com firmeza e austeridade comandava os seus súditos. Todas as pedras lhe obedeciam e mantinham suas características de brilho, cor e dureza. Fraturas e variações não eram permitidas. E assim, rubi, safira, esmeralda, água marinha, turmalina, granada, ametista, topázio e turquesa aguardavam petrificadas o momento mágico da extração, quando seriam finalmente lapidadas.

     A ametista tinha uma estranha afinidade com a esmeralda, ambas gostavam muito de ler.

     Ametista lendo, descobriu o significado do seu nome “não intoxicar” e ficou sabendo que poderia ser usada como amuleto contra a embriaguez.  O livro de mitologia fazia citação ao seu nome, seria ela uma ninfa transformada em cristal transparente para se proteger do assédio de Baco, e ele por puro deleite mergulho-a no vinho mudando a sua cor para violeta. Ela ria e se divertia, imaginando o quanto de coisas ela poderia ser.

     Esmeralda se gabava de ser a deusa verde de todas as pedras, pedra do amor, da fertilidade e da reencarnação para os egípcios, que a usavam nas múmias com a esperança da juventude eterna. Também os gregos a relacionavam a Afrodite, a deusa do amor. 

      Ametista e Esmeralda não sabiam exatamente o que era o amor, mas sabiam ler e desejavam ardentemente conhecer o mundo exterior. E durante muitos anos a leitura bastou para as duas.

     Numa manhã, o rei Diamante saiu do palácio para fazer sua inspeção, queria verificar se todas as pedras encontravam-se nos seus devidos lugares, protegidas da luz do dia e do aquecimento que poderiam danificá-las.  De repente, ouviu uma risada alta e espiando para o interior da jazida, viu Ametista lendo para Esmeralda. O rei Diamante que nunca havia aprendido a ler, não conseguiu esconder a sua inveja.  

     Elas com medo fecharam imediatamente o livro e abaixaram a cabeça numa postura de submissão.  O rei furioso começou a crescer, crescer, crescer... A ira o transformou em um gigante avermelhado e pequenas fraturas começaram a surgir. Num estrondo jamais ouvido, o rei Diamante se despedaçou e todo o reino mineral se desorganizou.

     Duas lascas acertaram as pedras leitoras e curiosas.  Ametista e Esmeralda foram transformadas.

     Ontem mesmo, buscando inspiração para a minha escrita, observava a natureza e esperava um sinal.  Quando vi, dançando na minha frente e rapidamente parando no ar, um beija-flor, muito pequeno, coberto de escamas de verde esmeralda e com a cabeça violeta. Ele beijava intermitentemente uma ametista, atraído talvez pela cor, o cheiro ou o sabor. Seja lá o que o capturou, ele se tornara prisioneiro do prazer proporcionado por aquela flor.

     A flor e o beija-flor enfeitiçaram o meu pensamento por horas e dias e fiquei imaginando que aquele pássaro não era apenas um beija-flor e aquela ametista não era apenas uma flor.

 

    

  Em busca da cura     O ciclo se repete, mas eu continuo viva. Como é difícil me aceitar, imperfeita, dissimulada e tão errante. Co...